Estranha perceção da história
J.-M. Nobre-Correia
Futebol : Os média praticam uma hierarquização de valores cujas repercussões no funcionamento da democracia são preocupantes…
Futebol : Os média praticam uma hierarquização de valores cujas repercussões no funcionamento da democracia são preocupantes…
Esta
infeliz iniciativa portuguesa que consiste em instalar televisores em tudo o
que é cafés e restaurantes tem consequências. A primeira é massacrar quem quis
ser cliente de um desses estabelecimentos, impondo-lhe telejornais e programas
de uma rara mediocridade. A outra é ver cidadãos e jornalistas estrangeiros
espantarem-se com a duração dos telejornais e a importância dada ao futebol.
Porque, mesmo quando não falam português, percebem bem que é de futebol que
tratam as imagens…
O
que eles ignoram, pobres estrangeiros !, é que não é só na televisão que o
futebol é assunto prioritário. O mesmo acontece na rádio e na imprensa (embora,
em boa verdade se diga, esta não chegue ao desplante de encher as páginas unicamente com um tema futebolístico.
Mas na televisão (pública ou privada), estes últimos dias, foi um fartote. Como
se mais nada tivesse acontecido em Portugal e no mundo…
Quem
considera que o mundo, a sociedade, a vida não giram em torno de homens em
calções que correm atrás de uma bola, é obrigado a aguentar a ditadura do
futebol. Ditadura de uma minoria, numerosa é certo mas minoritária, que confunde
a procura dos cidadãos com a oferta que os média lhes propõem. E que lhes
propõem em quantidades tais que os drogam, provocando uma evidente dependência.
Como
compreender que treinadores de futebol tenham direito a conferências de
imprensa diárias, religiosamente cobertas pelos telejornais ? Que se sigam devotamente
os campeonatos espanhol e inglês (no mínimo) ? E que não haja jornalistas nem
espaço para tratar assuntos culturais e científicos. Nem para explicar com
clareza questões económicas. Nem para abordar seriamente matérias sociais da
vida quotidiana. Admiremo-nos depois que, nesta “overdose” de futebol, os média
descubram que, numa sondagem, um futebolista seja uma das 11 “personalidades
dos últimos 40 anos que mais contribuiu para o País”. Triste perceção da
história ! E terrível responsabilidade a dos média nesta grande baralhação de
valores essenciais…
Texto publicado no Diário de Notícias, Lisboa, 26 de abril de 2014, p. 43.