Duas legítimas interrogações


J.-M. Nobre-Correia
Justiça / Média : Seja qual for o desfecho, o “caso Sócrates” põe sérios problemas no que se refere ao funcionamento da justiça e dos média. Porque estes dois pilares essenciais da democracia dão sinais inquietantes de disfuncionamento…

Três meses depois da sua detenção, o juiz de instrução criminal decide que José Sócrates vai continuar em prisão preventiva por mais três meses [1]. É pois tempo de escrever sobre o assunto, o que tem sido adiado até agora.
A razão principal deste adiamento : toda e qualquer atividade humana obedece a regras normativas teóricas e práticas. E, em matéria de justiça, as subtilidades são particularmente grandes, fora do alcance do comum dos mortais. A reação aqui expressa é pois a de simples cidadão. Cidadão com uma formação em ciências da informação e da comunicação e em ciências políticas, é certo [2]. Cidadão que, sobretudo, residiu a totalidade da sua vida de adulto (de maioria legal) no estrangeiro, com exceção destes últimos quase três anos.
Aspetos chocantes ou intrigantes
Ora, há dois aspetos chocantes, ou pelos menos intrigantes, na prisão preventiva de Sócrates. A primeira é a do tratamento totalmente diferente a que é submetido em comparação com toda uma série de casos que têm marcado a história contemporânea recente do país. E, para nos limitarmos ao caso mais atual, citemos o caso BES e do GES, de Ricardo Salgado, da sua família e dos seus colaboradores mais próximos.
Porém, o caso BES rebentou três meses mais cedo do que o caso Sócrates. E os responsáveis do BES e do GES (para não falar do caso paralelo e intimamente ligado da PT) continuam em perfeita liberdade. É claro que o simples cidadão não tem o direito de afirmar, como se afirma ultrajosamente um pouco por todo o lado, que Salgado é culpado. Ou que Sócrates é culpado. Pela boa razão que, simples cidadãos, desconhecemos o essencial de um e de outro dossiês.
Fica no entanto o sentimento que o tradicionalmente conservador meio judiciário português (mas tal caraterística é corrente para além da fronteira portuguesa, no resto da Europa) aproveita a ocasião para “fazer pagar a fatura” a Sócrates, que tomou decisões que eram desfavoráveis a este mesmo meio judiciário. Enquanto é naturalmente compreensivo com Salgado, homem da velha burguesia dominante e globalmente conservadora, como o dito meio judiciário. O que quer dizer que a prisão preventiva de Sócrates é, no fim de contas, uma “prisão política”, como a definiu o antigo presidente Mário Soares, tenha embora este sido imprudente noutras afirmações que fez sobre o assunto.
Mas há um segundo aspecto que tem que ser igualmente frisado : o das fugas de “informações” para os média e sobretudo para jornais impressos. Ora, qualquer conhecedor do funcionamento do sistema da informação sabe que só há duas interpretações possíveis nesta matéria.
Ou certos jornalistas se divertem a “bordar” histórias e “exclusividades” para as quais não dispõem de elementos de informação sólidos e devidamente verificados. Tese que não é de todo impossível, dados os poucos meios humanos e financeiros de que dispõem as redações em Portugal. Ou então são os meios judiciários eles mesmos que fornecem discretamente a certos jornalistas elementos de informação que fazem parte do chamado “segredo de justiça”. Tese que traduz uma “troca de serviços” de que tenores do meio judiciário esperam nomeadamente a “devida” recompensa, vendo os média pôr em valor a personalidade e a ação destes tenores, acalentando o egocentrismo de uns e ajudando a promoção profissional de outros [3].
Irresponsável ou culpável ineficácia
Diz o Público na edição impressa desta manhã que “ o procurador Rosário Teixeira vai ser ouvido sobre a violação do segredo de justiça no processo em que José Sócrates está indiciado”. É certo que a justiça em Portugal tem uma lentidão de caracol. Mas neste caso a lentidão é particularmente escandalosa. Num “fait divers” que teve lugar no sul da Bélgica pouco antes da detenção de Sócrates, a justiça funcionou de maneira exemplar. Desencadeadas as operações de busca de uma jovem desaparecida, a procuradora anunciou, logo na primeira conferência de imprensa do primeiro dia, que toda e qualquer fuga de informação daria lugar a investigação e a ação judicial contra o seu autor. Em Portugal, a decisão vem três meses depois : chama-se a isto irresponsável ou culpável ineficácia.
José Sócrates é culpado ou inocente, não sabemos : deixemos a justiça fazer o seu trabalho. Mas há razões sobejas para pôr em questão o funcionamento da justiça em Portugal, a sua independência e o seu respeito pela legalidade democrática [4]



[1] Decisão que abrange também Carlos Santos Silva, a propósito do qual se poderiam tecer as mesmas considerações que se fazem neste texto.
[2] O que se traduziu nomeadamente numas dezasseis cadeiras de direito…
[3] Ver também J.-M. Nobre-Correia, « A inconfessável conivência », in Notas de Circunstância 2, 26 de novembro de 2014.
[4] Ver também J.-M. Nobre-Correia, « A deusa enviesada », in Notas de Circunstância 2, 2 de dezembro de 2014.

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