Prólogo de uma crise anunciada
J.-M. Nobre-Correia
Política : Dia após dia, o Partido Socialista afunda-se na ausência de uma liderança
credível e de reais projetos alternativos. Enquanto que a esquerda radical vai
continuando a viver por procuração as mutações políticas na Grécia e em Espanha…
Num país onde o futebol é tema largamente
privilegiado por média e conversas “de café”, é natural que a “cultura” futebolística
impregne a vida social. E é também o caso da política : as lutas partidárias
são vistas e comentadas em termos de eterna rivalidade benfica-sporting,
desprovidos de racionalidade e obedecendo a sentimentos de pura emoção.
Foi de certo modo isto que aconteceu quando
António Costa desafiou António José Seguro, querendo substituí-lo na secretaria
geral do Partido Socialista. Costa via que a opinião pública estava cada vez
mais dececionada com o governo de direita, que as sondagens começavam a ser
favoráveis ao PS e que uma crise governamental não parecia de todo impossível.
Pelo que via já despontar no horizonte um sedutor lugar de primeiro ministro…
Uma oposição inconsistente
Na altura, poucos foram os que se interrogaram
sobre as divergências políticas de fundo que poderiam opor os dois rivais. Pelo
que a oposição foi antes do mais interpretada em termos de benfica-sporting.
Havia os adeptos de um e os adeptos do outro, com maior ou menor convicção. E
os que não estavam satisfeitos com um ou com o outro, ou que a rivalidade os
deixava indiferentes, resolveram apesar de tudo votar por Costa, esperando que
algo mudasse enfim no PS. Que fosse dada uma nova dinâmica social ao partido e
que o PS elaborasse um verdadeiro programa alternativo de governo capaz de
propor novas perspetivas à vida política e económica do país.
Meses depois, a verdade é que nada mudou no PS. Que
sondagens sucessivas mostram claramente que o esperado sobressalto da opinião pública
não teve lugar. E que, na devida altura, lá para setembro-outubro, o PS corre
seriamente o risco de não ficar parlamentarmente em condições de constituir
governo [1].
Perspetiva que parece tornar-se cada dia mais provável.
Mais provável até porque, ao adotarem uma atitude
totalmente diferente para com José Sócrates e para com os casos PT e BES (para
evocar apenas dois casos de atualidade) [2],
e ao prolongarem a detenção preventiva do ex-primeiro ministro, o procurador
Rosário Teixeira e o juiz Carlos Alexandre jogam indubitavelmente contra o PS.
Enquanto que a inércia e as “gafes” de Costa tudo fazem para que o PS não ganhe
credibilidade como partido reformador e social de esquerda.
No rol das “gafes” mais recentes de Costa há a
proposta de isentar o Benfica de uma dívida de 1,8 milhão de euros à Câmara de
Lisboa e legalizar sete edifícios construídos ilegalmente pelo mesmo clube.
Proposta que não mereceu a sã rejeição desejável por parte de uma opinião
pública anestesiada nesta matéria, que não ousa sequer discutir a decisão
parlamentar de transladar os restos de um falecido jogador de futebol para o
Panteão Nacional.
Mas a “gafe” politicamente mais significativa é a
do discurso pronunciado perante a comunidade chinesa em Portugal, por altura do
novo ano chinês. Costa afirmou então que Portugal está “hoje numa situação em
que está, bastante diferente daquela que estava há quatro anos”. Subentendido :
melhor do que quando o PS assumia o governo ! O que, em si, não é propriamente
escandaloso : o que é lamentável é que, como um pouco por toda a parte no resto
da Europa, os líderes de oposição não sejam capazes de reconhecer eventuais virtudes
à ação dos partidos no poder.
O que há de facto escandaloso é que, sobre a
situação económica do país, Costa diga uma coisa para consumo interno dos
portugueses e diga exatamente o contrário a um público estrangeiro, nesta caso
chinês, em nome de um pretenso “patriotismo”. Mas mais escandaloso ainda é que
Costa preste homenagem aos “investidores chineses [que] disseram presente”,
investindo em Portugal. Quando esses “investidores chineses” mais não são do
que representantes de uma ditadura capitalista ultra-selvagem que, sob a
carapaça de comunismo, pratica um esclavagismo social intolerável.
Os outros como modelo
Dias muito sombrios poderão pois anunciar-se para
o PS. E a demissão de Alfredo Barroso, um dos fundadores do partido, poderá dar
o sinal de retirada para outras personalidades mais. Mas os dias do PS poderão
ser tanto mais sombrios que as possibilidades muito teóricas de encontrar
aliados à sua esquerda parecem cada vez menos prováveis. Porque parece por
demais evidente que o PCP e o BE não sairão da tradicional posição de partidos
de contestação, puramente tribunícios, recusando toda e qualquer aliança com o
PS. Enquanto que o novo Livre-Tempo de Avançar não parece dar sinais tangíveis
de implantação social e, por conseguinte, de futura forte repercussão eleitoral.
A esquerda radical situada entre o PS e o PCP não
só se encontra seriamente fragmentada como desprovida de projetos de governação
audíveis fora dos cenáculos intelectuais da orla litoral norte. Preferindo,
ilusória e irresponsavelmente, dar a prioridade a manifestações de
solidariedade com o Syriza grego e o Podemos espanhol. Quando a coerência e a
operacionalidade do governo do Syriza ainda estão por demonstrar (o que não
deve, é claro, pôr em questão a solidariedade com o povo grego). E quando daqui
até às eleições legislativas de novembro-janeiro (pois ainda não foram fixadas),
o Podemos ver-se-á confrontado com uma série de eleições autonómicas e
municipais que poderão esvaziar seriamente os resultados de sondagens que o
colocam atualmente como o partido com mais intenções de votos.
A inércia e a ausência de projeto governamental
alternativo por parte do PS, assim como a fragmentação da esquerda radical e a
inexistência de projetos políticos suscetíveis de serem plebiscitados pelos
cidadãos eleitores, abrem as portas à permanência da direita no governo. Uma
direita cada vez mais conservadora e vindicativa que procura afincadamente
reconstruir uma certa velha ordem social e económica…
Só a formação de uma larga federação das
organizações de esquerda radical, capaz de negociar em pé de igualdade com o PS
(e por que não com o PCP ?…), seria de natureza a impedir que tal aconteça e a abrir
perspetivas realmente novas. Deixarão porém as rivalidades no seio desta
esquerda radical dar lugar a este indispensável realismo ?…