A pobreza de um horizonte cultural
J.-M. Nobre-Correia
Média : A importância da cobertura e a forma de tratamento da atualidade futebolística
pelos média portugueses, e sobretudo pela televisão, transformaram-na em massacre
ideológico extremamente preocupante…
Não ! Não é possível ! Os diretores, chefes de
redação, chefes de serviço ou simples jornalistas dar-se-ão conta do país que
estão culturalmente a fomentar ? Aquele para a origem do qual já tanto contribuíram
? Aquele ao qual fornecem diariamente uma “overdose” que torna a dependência
dificilmente reversível ?…
Nestas últimas duas semanas, sobretudo, os média
portugueses, e mais particularmente a televisão, mas até mesmo os diários ditos
de referência certos dias, têm-nos massacrado com futebol [1].
Com futebol todos os dias, de preferência em abertura de jornal, como tema
principal e interminável do jornal, em dois ou mais momentos do jornal. Ou porque
tal clube já ganhou o campeonato naquele domingo. Ou porque os adeptos deste
clube resolveram ocupar uma rotunda essencial do trânsito da capital, vociferar
e provocar desacatos. Ou porque um pai adepto desse clube foi espancado pela
polícia. Ou porque a equipa vencedora foi recebida na Câmara Municipal da
capital no dia seguinte. Ou porque no domingo depois acabou realmente o
campeonato. Ou porque dois clubes subiram à primeira divisão. Ou porque seis
responsáveis da Fifa foram presos. Ou porque a Fifa elegeu o seu novo
presidente. Ou porque outro clube venceu a taça de Portugal no domingo a
seguir. Ou porque esta outra equipa vencedora também foi recebida na Câmara
Municipal da capital no outro dia. Ou porque… Ou porque…
E depois, no resto dos inacreditavelmente
gigantescos telejornais ou nos minúsculos radiojornais, pouco mais aconteceu.
Para além da(s) sequência(s) diária(s) obrigatória(s) consagrada(s) ao primeiro
ministro. Mais o “direto” do antigos clientes do BES. Mais uns “faits divers”
de preferência criminais. E nada ou quase nada sobre a atualidade
internacional. E nada sobre a cultura e a ciência. E nada sobre tantos outros
domínios da atualidade com repercussões evidentes na vida de cada um de nós…
Ora, na atualidade em relação com o desporto, só o
tema do espancamento do pai adepto do clube vencedor, aos olhos do filho e do
avô, deveria ter merecido atenção. Evitando no entanto a cena de espancamento
repetida uma, duas, três e mais vezes no mesmo telejornal, e repetida diariamente
ao longo da semana. E procurando ir para além do simples aspeto emocional e aprofundar
a informação em termos de investigação. Da mesma maneira que a corrupção, as
prisões e a eleição na Fifa deveriam ter dado lugar a explicações de caráter
menos futebolístico, e mais económico, financeiro e geopolítico.
O massacre futebolístico destas últimas duas
semanas põe particularmente em evidência o facto que, neste país, diretores,
chefes de redação, chefes de serviço e simples jornalistas perderam toda a
noção de hierarquização dos factos de atualidade, de relativização dos factos e
de tratamento adequado a dar aos factos. Perderam muito simplesmente toda a
noção do que quer dizer cobrir a atualidade em termos jornalísticos, e não
veicular temas de comunicação e muito menos agir como provedoria de emoções
distrativas. Perderam a noção daquilo que é a função social do jornalismo, factor
de compreensão pelos cidadãos do mundo em que vivem e de inserção crítica na
vida quotidiana. E não estarem ao serviço da comunicação dos poderes instalados
(nomeadamente clubísticos), nem serem fomentadores de irracionalidade e
delírios estouvados.
Em democracia, diretores, chefes de redação,
chefes de serviço e simples jornalistas consideram-se livres e senhores das suas
iniciativas, mais ou menos ponderadas ou totalmente inconsistentes, sem terem
que prestar contas a ninguém. Esquecendo ou afirmando cinicamente não saberem
que, depois da família e da escola, os média são os principais formadores
culturais dos cidadãos. Que, hoje em dia, os média (e sobretudo a televisão) são
mesmo os principais catalisadores de cultura no sentido mais lato da palavra. E
se Portugal se encontra como se encontra no estado de miséria cultural em que
se encontra, esses diretores, chefes de redação, chefes de serviço e simples
jornalistas têm sérias responsabilidades no cartório…
Admiremo-nos pois que, no dia a dia, na rua, nas
conversas de café como no seio das empresas ou instituições, o tema dominante
seja o futebol, as declarações de jogadores, treinadores e presidentes de
clubes, e as vicissitudes das vidas privadas daqueles a que um diário de ontem
chamava “Super-Heróis” : nada menos e muito simplesmente !… Admiremo-nos pois
que tantos e tantos miúdos afirmem quando “quando forem grandes” quererem ser
futebolistas : pobre horizonte cultural e pobre ambição que os média lhes
propuseram !…
[1] Ver também J.-M. Nobre-Correia, « Uma
temática obsessional », in Notas de
Circunstância 2, 5 de julho de 2014.