Uma cegueira ofuscante
J.-M. Nobre-Correia
Justiça / Média : Para além mesmo do futuro pessoal do ex-primeiro ministro, o “caso
Sócrates” ilustra de maneira extremamente preocupante a situação da Justiça e o
estado da Democracia em Portugal…
Os portugueses vivem um drama permanente : o de
viverem em Portugal ! Encalhados entre Espanha e Atlântico. Ou melhor : entre
espanhóis e peixes. Espanhóis cuja arrogância os leva naturalmente a desconfiar
de tais vizinhos. E peixes que, para além de misteriosos gluglus, não têm grande
conversa…
Este isolamento interior leva-os a viver como
sempre viveram. A pensar como sempre pensaram. A comportar-se como sempre se
comportaram. Naturalmente. Porque é assim mesmo. Porque sempre foi assim mesmo.
Sem recuo em relação aos acontecimentos. Sem se confrontarem com outras maneiras
de pensar e de agir. Sem outros pontos de referência que os levem a
interrogar-se sobre por que há de ser assim e não poderia ser de outra maneira.
A interrogar-se sobre a questão de saber se, no fim de contas, não seria
preferível proceder de outro modo, como acontece noutros países de uma União
Europeia de que Portugal até faz teoricamente parte.
Procedimentos diferentes
Por exemplo : será que a Justiça em Portugal é de
uma extrema coragem e eficácia, e que nos nossos vizinhos mais próximos ela é
tragicamente pusilânime e atrozmente deficiente ? Ou é que, comparada com a
maneira como funciona a Justiça noutros países, haverá sobejos motivos para duvidar
do seu funcionamento em Portugal, da legislação que a rege e até da “cultura”
que reina no mundo judiciário ?
A grande maioria dos cidadãos desta país parece
estar de acordo para acusar a Justiça de uma inacreditável lentidão na gestão dos
seus “dossiês”, a pontos de haver processos sem conta que prescrevem por terem
sido ultrapassados os prazos legalmente previstos para a sua gestão. De um
tratamento iníquo dos indiciados em função de considerações pessoais,
político-partidárias e corporativistas por parte de procuradores e juízes. De
praticar um chocante desequilíbrio no que diz respeito à aplicação de medidas
judiciais e penas, segundo os arguidos, o estrato social destes e a notoriedade
dos seus advogados [1]. E, como
é sabido, a enumeração dos aspetos insatisfatórios da Justiça portuguesa
poderia continuar a ser alinhada…
O caso de José Sócrates é particularmente
significativo e chocante deste funcionamento degradante da Justiça. Porque,
quase sete meses depois da sua detenção, seguida de prisão preventiva, a
atitude do ministério público é totalmente incompreensível, claramente
discricionária e ad hominem. O que é
perfeitamente intolerável no Estado de direito que a democracia portuguesa
pretende ser. Se não, vejamos dois casos atuais em países vizinhos.
Em Espanha, Cristina de Borbón, filha de Juan
Carlos e Sofia, irmã de Felipe, está desde abril de 2013 imputada de delito
fiscal no chamado “Caso Nóos”, um dossiê caraterizado por corrupção política,
malversação, fraude, prevaricação, falsificação e branqueamento de capitais. Porém,
mais de dois anos depois, o ministério público espanhol não achou necessário
pôr a dita Borbón em detenção e muito menos em prisão preventiva. “Consequência
de um arcaico regime de monarquia”, dirão republicanos de boa fé. Mas o caso de
Nicolas Sarkozy, em França, mostra que não é bem disso que se trata…
Antigo presidente da República (2007-2012), Sarkozy
está atualmente indiciado em cinco dossiês judiciários : Tapie (escroqueria em
banda organizada), Sondagens do Eliseu (desvio de fundos públicos), Bygmalion
(escroqueria e desvio de fundos em proveito da sua campanha eleitoral para a
presidência) e Azibert (corrupção ativa e tráfico de influências sobre o
ministério público), aos quais vem juntar-se o gravíssimo dossiê Kadhafi
(financiamento pelo ditador líbio da campanha eleitoral de Sarkozy para a
presidência da República francesa).
Em todos estes casos, Sarkozy foi apenas posto em
detenção preventiva (“en garde à vue”) em julho de 2014, durante 15 horas, no caso do dossiê Azibert, no qual o antigo
presidente da República teria procurado influenciar o desenrolar do processo
judiciário Woerth-Bettencourt (financiamento ilegal da campanha presidencial do
mesmo Sarkozy).
Um silêncio ensurdecedor
Serão a Justiça espanhola e a Justiça francesa
exemplos mesmo de mau funcionamento perante uma Justiça portuguesa exemplar ? Será
uma admirável intrepidez da Justiça portuguesa que a levou a pôr em prisão
preventiva durante mais de seis meses um indiciado, não se preocupando
corajosamente com o estatuto social do dito indiciado ? Ou será antes que, como
afirmam diversos juristas, o juiz e o procurador de justiça do “caso Sócrates”
estão pura e simplesmente a agir à revelia da mais elementar noção de Estado de
direito ? Ou, como afirmam também observadores avisados, estão a praticar uma
fria “vingança mesquinha” em relação a quem, como primeiro-ministro, privou “a
classe” deles de exuberantes privilégios e mordomias ?
José Sócrates poderá muito bem a vir a ser
condenado como ilibado de culpa : não sabemos. E até, de certo modo, não é isso
o mais importante (embora, graças a instrumentalizações de funcionários de
justiça e de jornalistas, ele já esteja condenado). O mais importante é a maneira
como a Justiça funciona e é aplicada em Portugal. É a maneira como a Justiça
está a contribuir para o reforço do Estado de direito e da Democracia ou, ao
contrário, a favorecer a passos largos a instauração de uma república bananeira
de juízes que poderão agir em deliciosa impunidade. É disto muito mais
fundamental que se trata no “caso Sócrates”.
Ora, perante uma situação particularmente anómala
e chocante em que se prende para se investigar (e não se investiga primeiro,
para se condenar eventualmente depois e prender em seguida), os altos
responsáveis da Justiça em Portugal (presidente da República, ministra da
Justiça,…) não acham necessário intervir. Partidos políticos, sindicatos da
magistratura, Ordem dos Advogados, instituições da sociedade civil e simples
cidadãos mergulham numa confortável cegueira, numa inquietante apatia.
Uma clara cobardia tática
Com eleições legislativa à vista, o Partido
Socialista, o Bloco de Esquerda, os Verdes e o Partido Comunista preferem não
ver que o que está em causa não é apenas a perda de liberdade de Sócrates e o
seu destino judiciário. Trata-se sim, mais fundamentalmente, do futuro da
configuração do Estado de direito e da Democracia em Portugal. Só que a cobardia
tática é total, possa embora o balanço eleitoral vir ainda a reservar-lhes
sérias surpresas…
Enquanto isto, perante o destilar constante de
“exclusividades”, claramente instrumentalizadas e instrumentalizadoras,
propostas por muitos média (mas de preferência quase sempre os mesmos), Sindicato
e demais associações de jornalistas consideram que nada têm a dizer, a
criticar, a propor. Talvez porque consideram que uma “exclusividade” mais um
desmentido constituem sempre duas notícias, o que dá apesar de tudo mais grão
para lhes permitir moer. Preferindo esquecer a questão da tão generalizada
falta de credibilidade dos média, que tanto mal tem feito ao jornalismo e aos
jornalistas…
[1] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia,
« Duas legítimas interrogações », in Notas de Circunstância 2, 24 de fevereiro de 2015.