A máquina de perder está em marcha !


J.-M. Nobre-Correia
Política : Há razões objetivas que não deveriam deixar de ser favoráveis a um regresso da esquerda ao governo e à presidência da República. Mas há também aparelhos e prima-donas que apostam apenas neles próprios…

Estamos em tempo de eleições. Ou, pelo menos, elas aproximam-se a passos largos. Primeiro as legislativas, depois a presidenciais. Teoricamente as condições de fundo são em princípio favoráveis à vitória da esquerda, nas primeiras como nas segundas. Haja embora o “caso José Sócrates” que risca de explodir em qualquer altura (judiciosamente escolhida pela juiz de instrução, pretendem alguns) [1]. E haja também a ideia (no mínimo curta), que a direita e os média ao seu serviço conseguiram impor, de que o governo socialista precedente (e apenas ele) foi o responsável pela atual situação financeira e económica do país.
Para além destas duas contrariedades, todo o resto (ou quase) é potencialmente favorável a resultados eleitorais maioritariamente propícios à esquerda. Só que aquilo que o franceses chamam “la machine à perdre” pôs-se há muito em movimento. Primeiro com uma incapacidade bastante evidente do Partido Socialista em se afirmar como força de oposição realmente alternativa. Depois com um desencadear rampante de rivalidades no interior do PS que levaram a uma mudança pouco gloriosa de secretário geral. Sem que as mudanças em termos de conteúdo programático e de propostas concretas tenham passado a ser evidentes.
Como se isto não bastasse, de então para cá, o aparelho socialista foi cometendo erros em série [2], das declarações risíveis a empresários chineses aos cartazes [3] mais ou menos vazios de conteúdo ou nos quais figuravam pessoas que não se encontravam nas situações descritas… Sem esquecer uma inacreditável estratégia de silêncio perante o “caso José Sócrates”, mostrando-se o PS incapaz, não de tomar a defesa do antigo primeiro ministro, mas de defender uma conceção democrática, transparente e eficaz das decisões de justiça [4]. Fazendo da detenção anormalmente longa de Sócrates (e não apenas dele, como se veio a saber depois) uma boa oportunidade para rever uma legislação manifestamente insatisfatória num Estado de direito, em comparação com o que se passa em países europeus da mesma área geográfica e cultural [5].
A fragmentação como reforço da direita
Há no entanto fortes razões de natureza a levar os eleitores a considerarem que não é possível continuar assim, que se atingiram raias de insuportabilidade e que mais vale mudar de governo. Até porque a atual coligação PSD-CDS, para além mesmo de resultados económicos suscetíveis de serem considerados positivos por certos observadores, mostrou-se totalmente desprovida de escrúpulos. Fazendo em muitos aspetos exatamente o contrário do que anunciara, empobrecendo o país com privatizações regidas antes do mais por considerações meramente ideológicas, não manifestando o mínimo pejo nas amizades e nos favorecimentos expostos publicamente. E sendo sobretudo responsável de decisões a que os eleitores são extremamente sensíveis : baixa dos salários, redução das pensões de reforma, diminuição de um certo número de regalias sociais (nomeadamente em termos de saúde pública), convite a uma emigração em massa de jovens muitas vezes diplomados e cuja formação foi custeada pela Estado português.
Certo, é bem sabido que as sondagens valem o que valem. E tem havido provas sobejas no resto da Europa para mostrarem que vivemos um tempo de interrogações e incertezas, traduzido por vezes em resultados eleitorais totalmente inesperados. Mas não parece nada improvável que, mesmo se vier a ser o partido mais votado, o PS não disponha da maioria parlamentar que deseja. E aqui, a máquina de perder habitual já se pôs desta vez a funcionar a ritmo bem mais intenso do que nas eleições precedentes. Como uma esquerda para além do PS e do PCP mais fragmentada do que nunca, provavelmente incapaz de atingir resultados eleitorais significativos [6].
Ora, ao observar estes partidos, movimentos e listas eleitorais que por aí proliferam, a impressão que fica é a de que se trata na larguíssima maioria dos casos, para não dizer na totalidades dos casos, de uma situação fruto de rivalidades pessoais. E sobretudo de ambições egocêntricas de quem queria absolutamente ser “número 1” em Lisboa e nos dois ou três círculos eleitorais em que há uma vaga hipótese de virem a ser eleitos. O que significa portanto que, dadas as recusas de princípio do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda em negociarem com o PS, a hipótese de constituição de uma coligação maioritária de esquerda tem grandes probabilidades de continuar a ser puramente teórica. E neste caso, não parece nada absurdo imaginar que a atual coligação PSD-CDS possa continuar a assumir o governo da nação depois das próximas eleições legislativas [7]
A insuportável independência !
Num segundo tempo, a esquerda poderia então “consolar-se” com a eleição de um presidente da República vindo da sua área, de modo a conter ímpetos de um potencial novo governo da direita. Até porque o desempenho do atual titular da função tem sido tão desastroso, desbocado, desprovido de envergadura e de sentido de Estado, arrastando para mais caçarolas que deixarão uma marca pouco gloriosa na história da instituição. E neste contexto, a lembrança do desempenho dos três precedentes presidentes constitui um trunfo favorável à esquerda. Embora haja que tomar em conta a irresponsabilidade com que durante tantos e tantos anos, rádios e televisões (e colateralmente jornais) têm promovido quem sonha com tal função há imenso tempo, sabe-se lá senão desde que, pequenino, no seio de uma família do antigo regime, caiu na poção mágica do Poder, falte-lhe embora a “gravitas” que a função exige.
Ora, os profissionais do partidarismo, aqueles que ganham a vida fazendo política, muitas vezes sem nunca terem tido a ocasião de mostrarem que souberam exercer condignamente outra profissão, estão em polvorosa. E isto porque há quem na sociedade civil, com um curriculum profissional prestigioso, tenha ousado candidatar-se às eleições para a presidência da República ! O que é perfeitamente inaceitável para profissionais do partidarismo que consideram que a atividade política e as responsabilidades políticas devem ser assumidas por eles, única e exclusivamente por eles.
A voracidade desta casta de “apparatchiks” é tal que os ataques e os insultos começaram rapidamente a chover com rara intensidade. E, ao que parece, até já preparam uma segunda salva ainda mais intensa e suja. Porque, para eles, impõe-se esfrangalhar a única hipótese que havia até agora de reunir um largo consenso à esquerda, significativamente apoiada pelos três precedentes presidentes da República. Até porque, princípio clássico da gente sedenta de poder e regalias, mais vale deixar ganhar o campo oposto, do que “entregar o poder” a alguém da mesma área que lhe escapa em termos de controlo partidário. Para eles, há pois que pôr a máquina de perder a funcionar na máxima velocidade, a pleno rendimento. Esquecendo, demasiadamente à ligeira, que a população em geral, em Portugal como no resto da Europa, está farta de partidos políticos e de um pessoal político que, na grande maioria dos casos, pensam sobretudo neles e em arranjar confortavelmente, generosamente, a vidinha deles…
Que neste contexto, os atuais reitores das duas universidades públicas de Lisboa não tenham considerado dever remeter-se a um certo dever de reserva em relação a um colega, reitor de uma universidade pública da mesma cidade até há um ano apenas, mostra de maneira atroz a que ponto chegou a ausência em Portugal da mais elementar decência, no meio político e mais singularmente no meio académico



[1] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia, « A inconfessável conivência », in Notas de Circunstância 2, 26 de novembro de 2014.
[2] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia, « Prólogo de uma crise anunciada », in Notas de Circunstância 2, 27 de fevereiro de 2015.
[3] Em português de cão, os cartazes são agora designados pelo termo « outdoors » : santa e snobe ignorância !...
[4] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia, « Duas legítimas interrogações », in Notas de Circunstância 2, 24 de fevereiro de 2015.
[5] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia, « Uma cegueira ofuscante », in Notas de Circunstância 2, 16 de junho de 2015.
[6] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia, « A esquerda mais inapta », in Notas de Circunstância 2, 26 de março de 2015.
[7] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia, « As incertezas da evidência », in Notas de Circunstância 2, 30 de dezembro de 2014.

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