Os riscos do híper-ativismo
Política e média
J.-M. Nobre-Correia
A nova conceção da Presidência abre portas
a derrapagens inquietantes…
Os cidadãos têm motivos de regozijo. A um
presidente da República obtuso, cinzento e distante sucedeu outro capaz de fulgurância,
entusiasmo e sociabilidade. O anterior era incapaz de se assumir como homem de
Estado e ultrapassar clivagens políticas, de dar valor a quem reconhecidamente
o tinha e não cair no enaltecimento de gente civicamente pouco recomendável. O
atual é manifestamente mais aberto, culto e intuitivamente capaz de perceber o
que é conforme a um Estado de direito democrático.
Mas os cidadãos têm também motivos para se
inquietarem. Porque há no comportamento do novo presidente duas opções constantes
e preocupantes. Há antes do mais um ativismo em nada comparável à atitude dos seus
quatro predecessores e que dá sinais de transbordar a área habitual,
constitucional, da ação presidencial. Um ativismo que o leva a imiscuir-se
notoriamente na área de ação governamental. O que só tem sido possível porque o
governo é levado a fechar os olhos, sabendo que precisa de um aliado em Belém
para contrapor à fragilidade original de acordos parlamentares que não ousaram
traduzir-se em coligação ministerial. Com uma base de apoio mais sólida, não
teria o governo reagido ao singular convite a Mario Draghi para participar numa
reunião do Conselho de Estado e à não menos singular visita a Berlim para conversar
com a chanceler alemã sobre a relação de
Portugal com a União Europeia ?
A outra opção inquietante é a da
omnipresença quotidiana nos média, com telejornais a consagrarem uma, duas,
três, quatro ou mais sequências ao dia do presidente e às suas declarações a
propósito de tudo e de nada. Uma omnipresença que o próprio presidente
manifestamente favorece e que o serviço de comunicação de Belém
indubitavelmente promove. Quando o chefe de Estado num sistema constitucional
não presidencialista deve saber preservar uma certa reserva, de modo a que a
sua palavra e a sua ação possam ter o devido peso quando necessárias forem.
A atual banalização dos atos e da palavra
do chefe de Estado não tem comparação alguma com a dos seus congéneres
(presidentes ou monarcas) nos outros países da Europa ocidental. Olhe-se em
redor, digamos de há cinquenta anos para cá : nem no sistema constitucional
francês, que atribui poderes mais largos ao presidente do que no português [1],
os média evocam todos os dias os seus atos ou declarações. E as televisões não
pensariam um só instante consagrar diariamente uma série de sequências aos
factos e gestos do presidente. Nem o grande Charles de Gaulle, no tempo em que
dominava soberanamente o audiovisual francês, tinha direito a tal atitude de
cega reverência…
Que se trate da República francesa ou da
Monarquia belga, por exemplo, o chefe de Estado só intervém nos média nas
grandes ocasiões : a festa nacional e o primeiro dia do ano. Excecionalmente,
por ocasião de uma grave crise governamental ou de um referendo considerado
decisivo para os destinos da nação. Embora, no caso francês, tenha havido
algumas entrevistas excecionais dos sucessivos presidentes da República,
sobretudo em televisão, desde os tempos de Valéry Giscard d’Estaing. Como houve
algumas raríssimas emissões nas televisões belgas, mais ou menos hagiográfico-laudativas,
sobre o atual monarca e os seus dois predecessores [2].
Ora, o híper-ativismo nomeadamente verbal
do presidente português já começou por levantar um e outro problemas que
necessitaram ulteriores esclarecimentos dos serviços de Belém. Só que as
derrapagens são consequência inevitável deste híper-ativismo potencialmente
suscetível de provocar problemas maiores de natureza constitucional e de inconvenientes
confrontos entre a presidência e o governo.
A omnipresença diária nos média é também
de natureza a levar estes mesmos média a quererem saber mais sobre a “face oculta”
do presidente e da presidência. A quererem ir para além da versão oficial da
vida quotidiana do personagem, das suas relações familiares, sociais e afetivas,
dos meandros do seu passado nomeadamente político. O que tem grandes
probabilidades de lhe retirar a aura simbólica indispensável à magistratura
suprema junto da opinião pública. Esvaziando desde logo muito seriamente, junto
dos cidadãos, a sua capacidade de intervenção e decisão política, com
autoridade e serenidade, desmonetizado que foi o seu titular ao longo dos meses
por um híper-ativismo omnipresente…
Professor emérito de Informação e Comunicação da
Université Libre de Bruxelles
[1] O presidente da República francesa
preside nomeadamente o conselho de ministros semanal e representa a França nas
reuniões de chefes de Estado e de governo da União Europeia, num caso como no
outro sejam quais forem as maiorias parlamentares do momento.
[2] Sobre os efeitos da mediatização da
monarquia belga : J.-M. Nobre-Correia, "L'"affaire Delphine" : l'inévitable rupture", in Le Soir, Bruxelles, 25 de outubro de 1999, p. 2.
Original do texto publicado no diário Público, Lisboa, 20 de junho de 2016, p. 47.