Insuficiências muito incapacitantes
J.-M. Nobre-Correia
Professor emérito de Informação e
Comunicação da Université Libre de Bruxelles
Quando a apregoada “qualidade de vida” é de facto
de “baixa densidade”…
Andam por aí umas teorias que afirmam que
é “no interior” que, em Portugal, há “qualidade de vida”. E, com esta noção, os
seus apregoadores entendem qualidade do ar que se respira, proximidade dos
locais frequentados no dia-a-dia, menor tensão no ritmo de vida, contactos
familiares assíduos, relacionamento fácil, sociabilidade mais concreta, baixo
custo de vida,… Uma série de frases feitas que nem sempre correspondem à
realidade.
Não impede que em congressos, colóquios e
demais conferências se discorra repetidamente sobre esta “qualidade de vida”,
considerando os oradores que só o fraco desenvolvimento económico impede que se
viva em situação quase ideal. Embora alguns, um pouco mais lúcidos, acrescentem
também a falta de natalidade capaz de assegurar o futuro demográfico e até,
melhor ainda, de inverter a acentuada tendência para o despovoamento.
Só que estes arautos da “qualidade de
vida” em regiões “de baixa densidade” não parecem dar-se conta que nem só de
desenvolvimento económico vivem os cidadãos. E nem que tudo o que faz
largamente falta “no interior” virá necessariamente por acréscimo desse
desenvolvimento. Porque há condições de base de que o Portugal “do interior”
continua tragicamente desprovido e que pouco interessam autarcas e demais
responsáveis. O que leva os que lá sempre viveram a sonharem com uma futura instalação
no Centro-Norte Litoral. E os que lá se instalaram por razões de ordem
profissional a considerem a situação como provisória.
Este desapego endémico que mina o Portugal
“do interior” tem sobretudo como origem a falta de centros hospitalares
performantes, de estabelecimentos de ensino de alto nível e de infraestruturas
culturais com ofertas de qualidade. Em matéria de medicina, os cidadãos “do
interior” estão largamente dependentes dos numerosos centros hospitalares
públicos e das numerosíssimas clínicas privadas do Porto, de Coimbra e de
Lisboa. Pela simples razão que, “no interior”, os hospitais públicos ou das
Misericórdias, assim como as consultas privadas, não se encontram em condições
de propor a indispensável variedade de especialidades, equipamentos e
profissionais de saúde. Deixando mesmo em muitos casos o sentimento que só a
impossibilidade de singrar nas “grandes capitais” levaram boa parte dos
profissionais de saúde a instalar-se “no interior”.
Na educação, é também por demais evidente
que os grandes estabelecimentos de ensino secundário, politécnico e
universitário se situam largamente no Centro-Norte Litoral. Que fora deles, o ensino
superior “do interior” é geralmente considerado como fazendo parte, na melhor
das hipóteses, de uma “segunda divisão”. E um número sensível de docentes que
ensinam nestes estabelecimentos residem nos grandes centros do Centro-Norte
Litoral e dignam deslocar-se apenas um ou dois dias por semana à localidade que
lhes permite ganhar a vida.
Um pouco com a exceção do Porto, é verdade
que a vida cultural em Portugal se passa sobretudo em Lisboa. Que o resto do
país tem, na melhor das hipóteses, direito a uma vida cultural assumida antes
do mais por atores de segunda ou de terceira importância. Tanto mais que, “no
interior”, cidades há onde as salas de cinema, teatro ou concerto são inexistentes.
Onde não há uma livraria ou loja de jornais onde seja possível adquirir
publicações que não façam parte do consumo mais ou menos “popularucho”. E onde se
possam comprar CD ou DVD, fora dos propostos como “complementos” de jornais ou
magazines…
Desde logo, como conseguir atrair gente
para “o interior” e convencê-la a instalar-se duradoiramente, definitivamente,
se no Portugal da tal “qualidade de vida” esta é manifestamente de “baixa
densidade” em termos médicos, académicos e culturais ? Ainda se autarcas e demais
responsáveis pelas regiões “do interior” tivessem realmente consciência disso e
procurassem seriamente colmatar estas grandes deficiências !…
Ora, proliferam em Lisboa instituições
públicas ligadas à saúde, ao ensino e à cultura. Uma proliferação megalómana,
megalocéfala, que cria sérias dificuldades de coordenação e gestão, e não menos
sérios problemas de custos. Os mais elementares princípios de uma democracia
equitativa e eficiente não deveriam aconselhar a transferir as instituições em
demasia para “o interior” ? Decisões deste tipo foram tomadas noutros países :
por que não em Portugal ? Isso até ajudaria Lisboa a aliviar-se de um
preocupante congestionamento…
Original do texto publicado no diário Jornal de Notícias, Porto, 4 de julho de 2016, p. 34.
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Publica-se em seguida a primeira versão do texto que, por razões editoriais, teve que ser reduzida pelo autor de 4 780 para 4 404 carateres :
J.-M. Nobre-Correia
Professor emérito de Informação e
Comunicação da Université Libre de Bruxelles
Quando a apregoada “qualidade de vida” é de facto
de “baixa densidade”…
Andam por aí umas teorias todas modernaças
que afirmam que é “no interior” que, em Portugal, há de facto “qualidade de
vida”. E, com esta noção, os seus apregoadores entendem qualidade do ar que se
respira, proximidade dos locais entre os quais é partilhada a vida diária, menor
tensão no ritmo de vida, contactos familiares mais frequentes, relacionamento
humano mais fácil, sociabilidade mais concretamente viável, mais baixo custo de
vida,… Uma série de frases feitas que, porém, nem sempre correspondem à
realidade.
Não impede que em congressos, colóquios e
demais conferências se use interminavelmente da palavra sobre esta “qualidade
de vida”, considerando os oradores quase unânimes que só o fraco desenvolvimento
económico impede que se viva numa situação quase ideal. Embora alguns, um pouco
mais lúcidos, acrescentem também a falta de natalidade capaz de assegurar o
futuro demográfico e até, melhor ainda, de provocar uma inversão na tendência permanente
para o despovoamento desde há largos decénios.
Só que estes arautos da “qualidade de
vida” em regiões “de baixa densidade” não parecem dar-se conta que nem só de
desenvolvimento económico vivem os cidadãos. E nem que todo o resto, tudo o que
faz largamente falta “no interior”, virá necessariamente por acréscimo desse
tal desenvolvimento económico. Porque há condições de base de que o Portugal
“do interior” continua tragicamente desprovido e que manifestamente pouco
interessam autarcas e demais responsáveis. O que leva os que lá sempre viveram
a sonharem com uma futura instalação possível no Centro-Norte Litoral. E os que
lá se instalaram por razões de ordem profissional a considerem esta situação
pessoal como provisória.
Este desapego endémico que mina o Portugal
“do interior” tem sobretudo como origem a falta de centros hospitalares
performantes, de estabelecimentos de ensino de alto nível e de infraestruturas
culturais com ofertas de qualidade. Em matéria de medicina, os cidadãos
residentes “no interior” estão largamente dependentes dos numerosos centros
hospitalares públicos e das numerosíssimas clínicas privadas do Porto, de
Coimbra e de Lisboa. Pela simples razão que, “no interior”, os hospitais públicos
ou das Misericórdias, assim como as consultas privadas, não se encontram em
condições de propor a normal e indispensável variedade de especialidades,
equipamentos e profissionais de saúde. Deixando mesmo em muitos casos o
sentimento que só a impossibilidade de singrar nas “grandes capitais” levaram boa
parte dos escassos profissionais de saúde a serem levados a instalar-se “no interior”.
Na educação, é também por demais evidente
que os grandes estabelecimentos de ensino secundário, politécnico e
universitário se situam largamente no Centro-Norte Litoral. Que fora deles, o ensino
superior “do interior” é geralmente considerado como fazendo parte de, na
melhor das hipóteses, uma “segunda divisão”. E um número sensível de docentes
que ensinam nestes estabelecimentos, verdadeiros “académicos TGV”, residem nos
grandes centros do Centro-Norte Litoral e dignam deslocar-se apenas um ou dois
dias por semana à localidade que lhes permite todavia ganhar a vida.
Um pouco com a exceção do Porto, é verdade
que a vida cultural em Portugal se passa largamente em Lisboa. Que o resto do
país tem, na melhor das hipóteses, direito a uma vida cultural assumida antes
do mais por atores de segunda ou de terceira importância. Tanto mais que, “no
interior”, cidades há onde as salas de cinema, teatro ou concerto são inexistentes.
Onde não há uma livraria ou loja de jornais onde seja realmente possível adquirir
livros e publicações que não façam parte do consumo corrente mais ou menos
“popularucho”. E onde se possam comprar CD ou DVD, fora daqueles propostos por
vezes como “complementos” de jornais ou magazines…
Desde logo, como conseguir atrair gente
para “o interior” e convencê-la a instalar-se duradoiramente, definitivamente,
se neste Portugal a que atribuem essa tal “qualidade de vida” esta é
manifestamente de “baixa densidade” em termos médicos, académicos e culturais ?
Ainda se autarcas e demais responsáveis pelas regiões “do interior” tivessem
realmente consciência disso e procurassem seriamente colmatar estas grandes
deficiências !…
Ora, proliferam em Lisboa as instituições
públicas ligadas à saúde, ao ensino e à cultura. Uma proliferação megalómana,
megalocéfala, que cria sérias dificuldades de coordenação e gestão, e não menos
sérios problemas de custos. Os mais elementares princípios de uma democracia
equitativa e eficiente não deveriam aconselhar a transferir as instituições em
demasia para “o interior” ? Decisões deste tipo foram tomadas noutros países
europeus : por que não em Portugal ? Isso até ajudaria Lisboa a aliviar-se de
um preocupante congestionamento…