O outro pilar da repressão

J.-M. Nobre-Correia *

Como a Pide, a Censura zelava pela imagem do salazarismo e pelo cariz ordeiro dos portugueses …

Há ideias de livros interessantes. E há ideias de reedições que também o são. Só que, depois, lido o livro, descobrem-se lados insatisfatórios da primeira edição. Como se constatam aspetos muitos criticáveis da reedição…
Vir a lume em 1979 com um livro sobre a censura era uma ideia interessante e até mesmo essencial. Tanto mais quanto é certo que o dito livro era largamente constituído pela retranscrição de “telegramas telefonados da Comissão de Exame Prévio do Porto” (selecionados entre 5/1/1967 e 24/4/1974) e de “circulares dos Correios e Telecomunicações de Portugal sobre livros e revistas proibidos de circular”. E nada melhor para pôr em evidência o lado autoritário, inacreditável e por vezes até ridículo das decisões que provocavam um verdadeiro sufocamento da prática jornalística durante o salazarismo.
Quase quarenta anos depois, reeditar Os Segredos da Censura está longe de ser desprovido de pertinência. Dizem-se e escrevem-se por aí tantas barbaridades sobre o que foi o Portugal salazarista e sobre a jornalismo praticado então, que nunca é demais lembrar o que foi um país e um jornalismo privados de liberdade. Não impede que se tenham de lamentar diversos lados perfeitamente insuficientes da edição original e ainda mais desta segunda edição.
Primeiro que tudo há que lamentar a quase total ausência de explicitações sobre os acontecimentos a que fazem referência as decisões da Censura (com oito brevíssimas exceções em rodapé a propósito dos “telegramas” e nenhuma sobre as “circulares”). Quando, 42 anos depois, boa parte da população portuguesa usufrui o privilégio de não ter vivido sob o salazarismo, era absolutamente indispensável indicar os acontecimentos a que se referiam os “telegramas” ou as “circulares” e contextualizá-los de modo a que os leitores pudessem compreender o sentido real da intervenção da Censura.
Por outro lado, é lamentável que erros que figuram na primeira edição não tenham sido corrigidos na reedição, 37 anos depois. Como por exemplo : não escrever que “Domenach” (sem nome próprio) foi “o fundador-director da revista católica Esprit” (p. 16), quando Jean-Marie Domenach tinha dez anos quando a revista Esprit foi lançada por Emmanuel Mounier. Ou fazer referência a “Jaques Schreiber, director de L’Express” (p. 20), quando o fundador do magazine se chamava Jean-Jacques Servan-Schreiber.
A estas insuficiências vem juntar-se uma “introdução” de César Príncipe que peca por um tom ostensivamente ideológico e militante, onde não faltam o “grande capital”, a “luta de classes” e as “mafias patronais” (p. 23). Sem uma real preocupação histórica, sociológica e política, de simples jornalismo de qualidade, para pôr em evidência os grandes princípios de ação da Censura (apesar das breves linhas da p. 24). E, por conseguinte, sem explicitar o modelo de sociedade que a Censura queria propor aos leitores. E não é o prefácio de quatro páginas de Francisco Duarte Mangas, que constitui a única novidade desta reedição, que acrescenta o que quer que seja nessa perspetiva.
Vale a pena, no entanto, ler os “telegramas” e as “circulares” transcritas em Os Segredos da Censura. E ver como a Censura tinha antes do mais como preocupação que os média (e mais concretamente os jornais) propusessem do país a imagem de uma sociedade onde reinava a serenidade. Onde “nem uma agulha bulia na quieta melancolia” do regime salazarista. Onde não havia oposições, nem manifestações, nem contestações, nem greves, nem presos políticos, nem guerra nas colónias, nem mesmo demissões no interior das estruturas do regime, nem sequer acidentes ou mortes com pessoas ligadas ao regime : a nave do salazarismo deslizava serenamente, em águas tranquilas, em “defesa de interesses superiores da Nação” (Salazar dixit) !…


César Príncipe
Os SEGREDOS DA CENSURA
Edições Afrontamento, 140 pp, 12,00 euros


* Professor emérito de Informação e Comunicação da Université Libre de Bruxelles



Texto publicado no quinzenário JL Jornal de Letras, Lisboa, 17 de agosto de 2016, pp. 26-27.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Deixem-me fazer uma confissão

Como é possível?!

O residente de Belém ganhou mesmo?