A desoladora anarquia televisiva
J.-M. Nobre-Correia
Média : Uma primeira impressão deixa o sentimento de um considerável pluralismo.
Impressão perfeitamente ilusória : é a multiplicação de mais do mesmo que a carateriza,
numa singular e trágica monotonia…
Para quem viveu longuíssimos anos como
espectador e observador de outras paisagens televisivas, o que há de espantoso
na portuguesa é a manifesta a-regulação e a não menos notória a-regulamentação.
Pouco ou nada na paisagem nacional terá sido antevisto, planificado, programado.
E pouco ou nada foi convenientemente enquadrado por uma legislação apropriada,
para além mesmo do que estipula a União Europeia nesta matéria.
Portugal teve, no sector televisivo, um
desenvolvimento tardio mas super-rápido e tecnologicamente ultramoderno. O que
provocou uma híper-abundância de canais, sobretudo de proveniência estrangeira.
O que é particularmente evidente nos canais destinados a crianças ou
consagrados a documentários, a filmes ou a música, por exemplo. Canais com dobragem
sonora e vagas adaptações ao público português, no primeiro e segundo casos.
Canais em versão original e legendados (com traduções por vezes
inacreditavelmente horríveis !), no terceiro e quarto.
Uma real ausência de escolha
Estes canais de proveniência estrangeira
apropriam-se assim de uma parte do público anteriormente espectador de canais nacionais,
ao mesmo tempo que, o que é de certo modo mais importante, privam estes de
parte dos investimentos publicitários globais. Acrescente-se ainda que,
contrariamente ao que é legalmente estipulado noutros países da União Europeia,
os canais para crianças têm acesso à publicidade ...iniciando-as assim no
consumismo e na prescrição de produtos que os leva insistentemente a solicitar os
pais para os adquirirem ! Sem esquecer o conteúdo largamente marcado pela
cultura estado-unidense ou no mínimo anglo-saxónica…
Outra particularidade da paisagem
televisiva é o facto de o sistema de portagem (de assinatura) para canais
codificados ser apenas utilizado por canais desportivos nacionais, a Sportv dominando largamente a situação.
Outros canais propõem esta modalidade de acesso, mas são quase sempre, no que
lhes diz respeito, e na melhor das hipóteses, meras declinações portuguesas de
canais estrangeiros.
No que se refere aos canais generalistas,
a situação traduz manifestamente aquilo a que se poderia chamar uma autogestão
“espontaneísta” caótica. A começar pelo facto que, contrariamente ao que se
passa na Bélgica, na França ou na Grã-Bretanha, por exemplo, os grandes
telejornais têm lugar à mesmíssima hora nos três canais RTP 1, SIC e TVI. Nos discursos de palavreado
inconsistente que tiveram vida duradoira em vésperas de criação das televisões
privadas, falou-se muito de pluralismo da informação. Mas onde está o
pluralismo quando os jornais têm lugar à mesma hora e, em princípio, o
espectador só pode ver um ?
Na Bélgica francófona, a privada RTL-TVI emite o seu principal jornal do
fim da tarde às 19h00 e a pública RTBF 1
às 19h30. Em França, a pública France 3
às 19h30, a privada M6 às 19h45 [1],
a privada TF1 e a pública France 2 às 20h00 [2].
E quando, há anos atrás, a privada britânica ITV quis pôr o seu principal jornal da noite em concorrência direta
com a BBC 1, a alta autoridade (que na
Grã-Bretanha tem mesmo autoridade e faz aplicar as suas decisões !) obrigou-a a
voltar ao horário de origem.
Como se esta manifesta ausência de escolha
possível e de um impossível acesso a um real pluralismo não bastasse, vêm
juntar-se aos três canais generalistas portugueses os canais de informação
contínua. Não sendo nada raro que se assista ao mesmo “direto” (esta
pseudorreportagem não gravada nem montada, que é apenas a torneira aberta que
dá livre acesso a todas as manipulações dos meios dirigentes) em todos os
canais generalistas e de informação !
Mais e mais do(s) mesmo(s)
Estes canais de informação não foram
manifestamente planificados pela administração pública, cada um tendo nascido
pela simples vontade dos seus promotores que quase sempre foram as televisões
generalistas já existentes. Sem que verdadeiros cadernos de encargos lhes
tenham sido impostos. O que faz que estas pseudo-televisões de informação pouco
mais são do que meras redifusoras de sequências preparadas para os jornais das
generalistas. Às quais se acrescentam numerosas emissões de paleio, quase
sempre com os mesmos “comentadores” que falam de tudo e de nada, e de muitos
aspetos da atualidade sobre os quais são claramente incompetentes. Passando
alegremente da política nacional para a internacional, da economia para o
desporto, quando não da cultura para a gastronomia !…
Nestas televisões de informação, as
grandes reportagens e os documentários são quase totalmente inexistentes. Ou
melhor : são praticamente ausentes as emissões que supõem documentação,
preparação, contactos, entrevistas, arquivos, reportagem, filmagem e montagem.
Vejam-se as francesas privadas LCI, ITélé, BFM TV e sobretudo a novíssima pública France Info (lançada em setembro) e compreender-se-á a diferença e
tomar-se-á consciência do deserto de conteúdo em que vivem as pretensas
televisões de informação em Portugal.
É certo que a televisão em Portugal nasceu
torta : com o estatuto de sociedade privada (contrariamente à quase totalidade
das primeiras televisões no resto da Europa, nascidas no sector público), com
publicidade e emissões patrocinadas (duas características inconcebíveis na
grande maioria das televisões nascidas nos primórdios da história da
televisão), e pouca produção criativa. E os maus hábitos foram-se reforçando ao
longo dos anos…
Será pois bem difícil redesenhar uma nova
paisagem televisiva. E para que tal seja concebível é indispensável que governo
e partidos presentes na Assembleia da República tomem seriamente consciência do
papel capital que o média televisão assume em termos socioculturais. De como o
conteúdo das suas emissões servem de modelo a conceções de vida privada e de
vida social, a projetos de vida profissional. De como, depois da família e da
escola (e até em certos aspetos : antes delas) a televisão é desde há decénios
a grande (de)formadora da cultura popular.
O indispensável reenquadramento
Há porém que legislar serena e ponderadamente
sobre a paisagem televisiva, sobre as suas estruturas de propriedade,
funcionamento e conteúdo. E dotar o sector de uma verdadeira alta autoridade
dotada de poderes importantes. Uma alta autoridade composta por gente de real
competência, para quem o facto de fazer parte não constitua nem uma agradável
situação de prestígio e conforto material, nem um trampolim para novas ambições
na carreira socioprofissional ou até mesmo no mundo da política.
É urgente que a paisagem televisiva em
Portugal venha a ser realmente pluralista em termos de propriedade, de
programação, de conteúdos. Com televisões que produzam ou façam produzir por
empresas exteriores sediadas em Portugal verdadeiras emissões de divertimento,
nomeadamente de filmes, e verdadeiras emissões de informação em que autênticas
reportagens e sérios documentários constituam uma parte importante da
programação proposta aos cidadãos.
Como as empresas públicas ou privadas que
exploram a televisão em Portugal não souberam ser comedidas e propor conteúdos
de qualidade, terão que ser os poderes públicos a assumir responsabilidades,
impondo-lhes nomeadamente cadernos de encargos pluralistas e diversificados.
Responsabilidades que deveriam ter assumido logo nos anos 1970, quando a
conjunção da descoberta da democracia e da evolução da tecnologia supunha que
assim tivesse sido…
[1] À mesma hora, 19h45, começa igualmente o
telejornal do canal cultural franco-alemão Arte.
[2] Os belgas francófonos, depois de verem os
telejornais de RTL-TVI e da RTBF 1, poderão ver ainda o telejornal
de TF 1 ou de France 2. Uma formidável sucessão de jornais que, num total de
1h30-1h40, permite ao espectador atento tomar consciência de hierarquias de
informação diferentes e modos diferentes de tratar jornalisticamente a atualidade.
Texto resultante de uma série de três textos publicada no blogue A Vaca Voadora, Lisboa, 6, 7 e 8 de dezembro de 2016.
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