Um pedido de boicote absurdo
J.-M. Nobre-Correia
Média : Um grande nome da literatura portuguesa propõe que se deixe “de comprar o Público”. Sugestão tanto mais estranha
que os escritores se queixam dos baixos índices de leitura. Ou será que os
jornais são assim tão lidos ?…
Um dos romancistas portugueses mais em vista, fez esta madrugada uma
estranha proposta aos seus “5000 amigos” no Facebook : “Por favor, deixem de
comprar o Público”. Com a seguinte
argumentação : “O jornal foi abastardado,
transformou-se numa tarjeta panfletária de interesses muito localizados, muito
desmascarados, muito à mostra. Todo um fingimento descaradamente foleiro. Não
há, a nenhum respeito, a menor confiança naquilo. Um cartaz ou uma pichagem
(«Vivam os nossos amados patrõezinhos, mai-las suas opiniões !») resolvia-lhes
o servilismo, escusavam de tanto aparato de letras e bonecos. Menos 5000
leitores, eu sei, significa pouco. Basta que o engenheiro beneficiário suba o
preço de alguns iogurtes e estará compensado. Mas o sentimento de deixarmos de
andar enrolados numa farsa, encenada por gentalha menor, também compensa não ?”.
Pouco importa aqui
saber se se está de acordo ou não com a argumentação do autor. Um facto é
incontestável : há uma evolução percetível no posicionamento editorial do Público desde que a nova direção entrou
em funções. Mas não terá havido outras evoluções percetíveis (e num dos casos
até politicamente muito percetível) depois das precedentes direções terem
assumido o poder editorial no jornal ?
Uma das acusações
mais habituais nestes últimos meses é a do Público
ter iniciado uma viragem para a direita. Nestes últimos dias insistiu-se
nomeadamente no facto de ter dispensado três colaboradores exteriores
jornalistas, (auto-)designados como sendo “de esquerda”. O que não impede que
se encontrem nas páginas de hoje do jornal nomes como Joana Mortágua, Francisco
Louçã, Domingos Lopes e Rui Tavares que, como toda a gente sabe, não se situam
exatamente à direita e até têm ou tiveram responsabilidades em formações
políticas da esquerda radical. Mesmo que haja quem possa pensar que as quatro
publicações de hoje obedecem a uma pura “tática” de diversão da direção no
contexto atual…
De qualquer modo, o
boicote de um jornal só se pode justificar quando este passa subitamente a
tomar atitudes totalmente inadmissíveis e em radical desacordo com as que
sempre foram as suas opções sociopolíticas essenciais ou com os mais
elementares princípios da ética. Será o caso no que diz respeito ao Público ? Com os quatro precedentes
diretores, terá o jornal sempre mantido opções idênticas ou pelo menos próximas
das que foram as de Vicente Jorge Silva, seu primeiro diretor ?
Numa perspetiva mais
mediática : terá o mínimo sentido fazer um convite ao boicote da compra, e por
conseguinte da leitura, de um jornal num país que conta miseravelmente apenas cinco
diários generalistas ditos “nacionais” ? Num país que tem, e de longe, as mais
baixas taxas de leitura da imprensa diária da Europa ocidental (e o romancista
provavelmente sabe-o bem, até porque viveu num país onde a imprensa tem um
índice de penetração quase dez vezes superior) ? E pensa seriamente o autor do
convite ao boicote que os leitores do Público
vão passar a comprar outro diário (quando toda a história da imprensa europeia
mostra que o desaparecimento de um jornal ou o seu boicote provoca uma inevitável
e muito substancial redução do “leitorado” global da imprensa) ? E se de facto
parte dos leitores do Público passarem
a comprar (imagina-se) o Diário de
Notícias (o jornal que se situa numa categoria similar), não tem sido este também
acusado pelos mesmo meios socioculturais de ter igualmente “virado à direita” ?
Em que ficamos ?…
A triste constatação
que tem de ser feita é que, ao convidar os leitores a deixarem “de comprar o Público”, o romancista que toma tal
iniciativa está incautamente a serrar o ramo da árvore da leitura em que está
sentado. É porém possível que
ele esteja pronto a assumir as consequências da sua iniciativa. Mas quem deseja
que haja cada vez mais e mais leitores de jornais em Portugal só pode lamentar
a iniciativa absurda do escritor em questão. Mais valia que tivesse proposto
aos jornalistas vítimas de sucessivos despedimentos nestes últimos tempos que
ousassem lançar novas publicações impressas ou digitais : ficaríamos então
culturalmente mais ricos [1]…
[1] Ver também J.-M. Nobre-Correia, « Amálgamas que impedem de ver
claro », in Notas de Circunstância 2,
17 de janeiro de 2017.
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