Esta ortografia sem rei nem roque
J.-M. Nobre-Correia
Sociedade / Política
: Vinte e seis anos depois, a Academia das
Ciências acorda de uma longa letargia e faz “sugestões para o aperfeiçoamento”
de um acordo. Mas previne que o processo “pode ser moroso” : valha-nos o deus Tot
!…
Esta história do Acordo Ortográfico é uma
triste ilustração do funcionamento da sociedade portuguesa. Ou melhor : a
história de um “acordo ortográfico” que data de 1990, que é posto em aplicação
em 2011, e que agora, 26 ou 6 anos depois, segundo os cálculos, é objecto de “sugestões
para o aperfeiçoamento do acordo ortográfico da língua portuguesa”. E isto por
parte de uma Academia das Ciências de Lisboa que deve ter andado ocupadíssima
estes anos todos (sem que os miseráveis cidadãos de base se tenham dado conta
disso) e que agora acorda e vem relançar a discussão. Uma história miserável,
profundamente miserável !…
Se não vejamos. Vive um cidadão português
há quase 45 anos no estrangeiro, num país onde a sua vida social e a sua actividade
profissional se desenrolam sobretudo noutra língua. Mas o dito cidadão escreve
também semanalmente na imprensa portuguesa dita “nacional”. Um dia, o diário em
que colabora passa a adoptar o “acordo ortográfico”. E o cidadão português,
preocupado, rodeia-se de documentos e nomeadamente de dois programas
informáticos para procurar assumir a nova situação.
O cidadão português estrangeirado bem se
dá conta que há decisões estranhas na nova ortografia, nomeadamente em matéria
de acentos e de letras mudas. Coisas elementares como “por” e “pôr” ou “para” e
“pára”, dois exemplos apenas do primeiro caso, são estranhíssimas. E depois há
letras ditas mudas que, na maneira como ele as pronuncia, não são nada mudas : “sector”
e “espectador”, por exemplo.
Mais de 45 anos depois, o estrangeirado torna-se
retornado e passa a residir em Portugal. E descobre de chofre que, neste tal país
à beira mar plantado, cada um faz o que quer. Que as decisões tomadas ao mais
alto nível não são para aplicar, não são pura e simplesmente aplicadas. E irrita-se
ao descobrir nos jornais que decidiram aplicar o acordo, uns tantos ou quantos pedantes,
de preferência uns autoproclamados intelectuais, porem no fim dos seus textos
que não aderem ao acordo ortográfico e que escrevem segundo a antiga ortografia.
E até há mesmo um que põe isso no final dos seus próprios textos publicados no
jornal de que é director !
É como a história dos táxis : aqui há
muitos, muitos anos, foi decidido oficialmente que deveriam ser pintados a
preto e verde, clara maneira de os identificar à distância. Depois, longos anos
depois, foi decidido também oficialmente que deveriam passar a ser pintados
numa cor creme. Mas os portuguesinhos são profundamente individualistas, egocêntricos
e algo anarcas : longas dezenas de anos depois encontramos táxis pintados à
maneira mais antiga e à maneira mais recente. Pena é que os pretos e verdes não
inscrevam nas portas : “decorado com a antiga pintura”. Seria de um chique
formidável !…
Vem agora pois a Academia das Ciências de
Lisboa, acordada de uma longuíssima letargia durante a qual pouco ou nada se
ouviu falar dela, a fazer “sugestões para o aperfeiçoamento do acordo
ortográfico da língua portuguesa”, 26 anos depois ou 6 anos depois ! Mas o seu
presidente anuncia também desde já que o processo de revisão do acordo ortográfico
“pode ser moroso” ! Para quê pressas ? Ao que parece, uma Academia só pode dar
os lentíssimos passinhos que convêm à sua provecta idade !…
Pobres miúdos que aprendem actualmente a
escrever português nas escolas ! Pobre professores que não saberão a partir de
agora para que lado se virar e como ensinar a gramática da língua portuguesa ! Pobres
editores de livros que depois de ter reeditado obras antigas com a nova
ortografia [1], vão ter eventualmente que reeditá-las nos
próximos meses ou anos com a nova novíssima ortografia ! Pobres de nós todos
que andamos há seis anos a escrever segundo as decisões legais tomadas na
matéria : vamos ter agora que esperar não se sabe quanto tempo (quiçá : quantos
anos) para ficarmos fixados sobre o assunto…
Que há responsabilidades dos que fizeram
sucessivamente parte do “arco da governação” durante estes 26 anos e até mesmo já
antes do acordo de 1990, é a evidência mesmo. Mas que a Academia de Ciências de
Lisboa deveria ser chamada à pedra e não andar a sacudir levianamente a água do
seu capote, seria obra de salubridade democrática. Até porque se os seus 237
anos de idade a impedem de assumir a utilidade pública desejável e a salutar operacionalidade
adequada a estes tempos do século XXI, então que se proceda rapidamente a uma
reforma de fundo da sua missão e das suas estruturas de funcionamento.
No fim de contas, esta história do Acordo
Ortográfico é uma triste ilustração da incapacidade recorrente da sociedade
portuguesa em dotar-se de regras reflectidas, ponderadas, consistentes e de, em
seguida, aplicá-las efectiva e universalmente. E nisto, as grandes instituições
como a Academia das Ciências de Lisboa são altamente responsáveis e manifestamente
culpáveis. Mas como ninguém lhes pede contas, continuam a viver numa deliciosa
e permanente impunidade !…
[1] Nem sempre estes editores têm o cuidado
de rever o novo texto proposto pelo programa informático que utilizaram para
adaptar a ortografia. Assim a recente reedição de Alexandre Herculano, História da origem e estabelecimento da Inquisição
em Portugal, tomo I, Lisboa, Bertrand, 2017, 228 p. (col. 11-17, n° 370).
Entre muitas deficiências do novo texto, encontramos por exemplo na p. 175 um “Henrique
viu de Inglaterra” em vez de um Henrique VIII de Inglaterra !…
Texto publicado no blogue A Vaca Voadora, 4 de fevereiro de 2017.
Texto publicado no blogue A Vaca Voadora, 4 de fevereiro de 2017.
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