Este nauseabundo tempo que passa
J.-M. Nobre-Correia
Política / Média : A história da Caixa Geral de Depósitos põe em evidência o estado da vida
política e do jornalismo em Portugal. Com “altos responsáveis” incapazes da
mais elementar altura de vistas e do indispensável dever de reserva…
A grande política como o grande jornalismo
supõem altura de vistas e recuo em relação às minudências. E nestas duas
matérias, andamos neste país muito ao rés dos malmequeres [1], como dizem os francófonos. Isto é : a
arrasar indigentemente bem perto o nível do solo.
É disto de facto que se trata quando se
veem políticos e jornalistas tratar a história recente da Caixa Geral de
Depósitos. Atardando-se a pecadilhos e evacuando o essencial. Com os tenores da
oposição executando uma guerrilha cerrada e permanente ao ministro das
Finanças. Esquecendo quão deficiente foi a sua governação e a animosidade, para
não dizer o ódio, que ela suscitou na população. Esquecendo a contradição total
das promessas que fez em campanha eleitoral e a prática que aplicou depois no
poder. Esquecendo a aflitiva mediocridade e o triste servilismo dos seus dois
ministros das Finanças, e o desempenho historicamente brilhante do atual
titular desta pasta. É isso, no fundo e em resumo, o que precisamente a direita
é incapaz de suportar, não quer de modo algum admitir. Como não tolera que a
situação económica do país tenha melhorado e que todas as sondagens de opinião
sejam cada vez mais desfavoráveis à direita.
Como se isso não bastasse, uma preocupante
anomalia veio ainda coroar esta situação : a de conselheiros de Estado,
“comentadeiros” de televisão, a quem apraz envenenar seriamente a situação.
Esquecendo uma noção elementar desse estatuto de conselheiros de Estado : o
dever de reserva. É verdade que houve quem os tivesse precedido na ambiguidade
deste duplo estatuto. Mas isso não é per
se de natureza a justificar tais procedimentos.
No meio deste clima político e
jornalístico deplorável, vem um ex-presidente da República pôr uma vez mais em
evidência o seu caráter mesquinho e rancoroso. Publicando “memórias” muito
seletivas, a acreditar nos relatos que diversos média fazem delas. Esquecendo
numerosos episódios financeiros ligados a diversos amigos seus e até a ele
próprio. Esquecendo outros de instrumentalização jornalística em que ele
próprio esteve na origem ou que autorizou. E abatendo todo o seu veneno sobre
um ex-primeiro ministro que, confrontado à justiça há demasiado tempo e tendo sofrido
uma longa detenção decidida por uma justiça notoriamente seletiva (que deixou
outros arguidos de peso em liberdade), merecia pelo menos um pouco de
complacência.
O caráter vingativo do dito ex-presidente
não foi manifestamente bom conselheiro. Por uma questão de dignidade e de
respeito para com as altas funções que assumiu, deveria ter remetido a
publicação das ditas “memórias” para quando a situação judiciária do
ex-primeiro ministro já tivesse sido decidida. Até porque este tempo de espera
ter-lhe-ia permitido talvez lembrar-se de todos esses acontecimentos que
enxovalharam a sua longa passagem por Belém…
Em países de velha e arreigada democracia,
é absolutamente inimaginável que o “colóquio singular” [2] entre o chefe de Estado e o primeiro
ministro possa ser trazido a público. Da mesma maneira que é totalmente impensável
que um “ministro de Estado” [3] possa assumir funções de “comentador” nos
média. Até porque a longa tradição democrática destes os impediria de imaginar
um só instante que ele pudesse assumir tal função e não respeitasse os seus
deveres de Estado.
Mas, para que essa pudesse ser também a
prática habitual em Portugal, o presidente da República deveria ter o cuidado
de não nomear como seus conselheiros nem “comentadeiros”, nem advogados que
confundem deveres de Estado e interesses de escritório, nem coscuvilheiros que
lhe levem e tragam “recados”. Até porque, para além da teoria do texto constitucional,
uma democracia só o é realmente se os mais altos responsáveis do Estado, bem
mais do que os simples cidadãos, a praticam de maneira exigente, rigorosa e
desinteressada. Começando pelo próprio chefe de Estado que não deve, numa omnipresença
quotidiana, assumir funções que não são constitucionalmente as suas…
[1] Em francês : au ras des pâquerettes.
[2] Expressão que, na Bélgica, designa as conversas do rei
com os seus interlocutores e se refere igualmente ao encontro semanal com o
primeiro ministro.
[3] Título oficial atribuído na Bélgica a personalidades
que podem em circunstância excecionais servir de conselheiros do chefe do
Estado.
Texto publicado no blogue A Vaca Voadora, 19 de fevereiro de 2017.
Excelente!
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