Coincidências e interrogações
J.-M. Nobre-Correia
Política : Afinal o governo e a maioria parlamentar não tiveram a esperada curta vida.
E “o diabo” anunciado também não veio. Terá então a direita sido levada a conceber
uma nova estratégia ofensiva ?…
A leitura de Quando Portugal ardeu [1] tem algo de chocante, de profundamente
chocante. Sobretudo para quem, nesse “pós-25 de Abril”, vivia longe do país, na
“capital da Europa”. Até porque, nesse tempo, poucos jornais portugueses lá
chegavam e chegavam tarde. Porque a rádio dificilmente se captava e só se
conseguia fazê-lo em onda curta, em más condições. Televisão, nem pensar nisso.
E muito menos internet, que nem sequer existia para o comum dos mortais.
É claro que pelos média estrangeiros de
referência, sabia-se que o “pós-25 de Abril” não era precisamente um mar de
rosas. E que, sob as aparências de uma “revolução alegre e tranquila”, muita
violência dominava a vida quotidiana. Mas de lá a imaginar que a violência
política atingia tais níveis com incêndios, atentados e assassinatos que
raramente tiveram que afrontar o braço da justiça do novo Estado democrático…
Publicado em março, as “histórias e
segredos da violência política no pós-25 de Abril” descritas em Quando Portugal ardeu vêm forçosamente
ao espírito nestes últimos dias. Com o trágico incêndio de Pedrógão Grande :
saberemos talvez um dia se se tratou de fogo declarado por causas
meteorológicas raras, se fruto de incúria humana ou de vontade deliberada,
grandemente incrementado por outras causas meteorológicas ainda mais raras.
Que tão trágico acontecimento venha a
servir rapidamente de arma de arremesso da direita não é propriamente
surpreendente. Que poucos dias depois tenha havido um enorme roubo de armas
numa instalação militar, isso já constitui uma coincidência altamente
preocupante. E que, no caso do incêndio como no do roubo de armas, tenham sido
jornais espanhóis a servir de agentes de destabilização do atual poder político
português é de natureza a suscitar inquietantes interrogações.
Até porque, El Mundo (que não existia ainda por alturas do “pós-25 de Abril”)
sempre foi um diário marcadamente de direita. Mas um diário de uma direita
ativista, intervencionista, que procura pesar na vida política não só dos governos
espanhóis, mas até e muito particularmente na vida política da direita e dos
governos de direita. Um ativismo tal que leva o seu proprietário (o grupo
italiano RCS, representante dos meios industriais e financeiros de Milão) a
decidir destituir o fundador e primeiro diretor, Pedro J. Ramirez, em fevereiro
de 2014. O mesmo que virá a ser fundador e diretor do diário digital El Español, lançado em outubro de 2015.
Que tenha sido El Mundo, que deixou de ter correspondente em Portugal, a publicar
textos de um ilustre desconhecido (“sob pseudónimo”) num tom altamente
agressivo em relação ao governo de António Costa é no mínimo intrigante. E que
seja depois El Español a publicar uma
lista detalha dos armamentos roubados é ainda mais intrigante.
Sabemos que em conversa dominada pela arrogância
ou por um pretenso humor, segundo os meios socioculturais, Portugal é para boa
parte dos espanhóis uma “anomalia” na mítica “unidade ibérica”. Como sabemos
que a extrema direita nunca foi afastada do poder em Espanha e que a direita
ficou, ela, largamente marcada pelo franquismo. Como sabemos ainda o papel que
tiveram os meios dirigentes espanhóis no acolhimento de todos aqueles que na
extrema direita salazarista como na direita radical conservadora semearam o
terror em Portugal nos anos 1974-76 e planearam golpes de Estado e sonharam até
com guerras civis.
Logo de início, a direita portuguesa
estimou que o governo do PS e a maioria parlamentar de esquerda não teriam
muito tempo de vida. Os meses passando, achou que “o diabo” chegaria na
“rentrée” de setembro do ano passado. Nada porém ocorreu como esperava e os
resultados positivos da governação foram-se acumulando. Que em vésperas de nova
“rentrée”, a direita mais radical e mais antidemocrática tenha concebido novos
tipos de ação, é hipótese que não pode deixar de ser encarada. Tanto mais
quando é certo que, em poucos dias, toda uma série de meios socioprofissionais
(justiça, enfermeiros, militares,…) começaram a dar sinais alarmantes de que,
para eles, a atual governação, e porventura até o atual estado da democracia
social, já durou demasiado tempo…
[1] Miguel Carvalho, Quando Portugal ardeu, Alfragide, Oficina do livro, 2017, 556 p.
Texto publicado no blogue A Vaca Voadora, 4 de julho de 2017.
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